O Espírito Santo tem, portanto, bastante razão para dizer: Como um pouco de terra e de cinza pode se orgulhar? [Eclo 10,9] Não há nada na cinza: nem propriedade, nem virtude, nem germe: assim não há nenhum valor intrínseco no homem, não há nada; é o nada, um pouco de pó, humanizado pelo poder divino. Se, pois, esse nada humanizado, se o homem tem qualidades, mérito, tudo isto é de Deus e Lhe pertence. Se o homem faz grandes coisas, a glória pertence à graça de Deus que o faz agir e obter êxito. A cinza é pisada aos pés, ela não se ofende por isso, ela não teria razão, é seu lugar natural, é o nosso também, já que não somos senão um pouco de pó; é o nosso lugar a mais justo título, uma vez que acrescentamos o pecado. Um dia, seremos pisados pelos pés de todo mundo, mas sem mérito. […]
As cinzas são bentas pela Igreja, a fim de que sejam o sinal e o canal da graça. De que graça? Da graça da penitência, segunda verdade que as cinzas nos pregam.
A Igreja nos impõe cinzas no começo da Quaresma para nos lembrar que, sendo pecadores, devemos procurar tornar-nos penitentes. A cinza é o resto do incêndio. Ah! nossos pecados consumiram talvez tudo o que tínhamos de méritos, de virtudes, não nos resta mais senão a cinza da humilhação e da miséria. Pois bem! é preciso imitar os Judeus culpados, mas penitentes: eles se revestiam de um cilício e cobriam a cabeça de cinzas como mortos, para manifestar que eles não tomavam mais parte nas alegrias e nos prazeres do mundo, que eles se isolavam para rezar e para chorar seus pecados na solidão e no silêncio.
Nos tempos fervorosos da penitência pública de certos pecadores públicos, no primeiro dia da Quaresma, a Igreja os fazia vir à porta do Santuário e aí, os declarava penitentes impondo-lhes a cinza e a veste de penitência, depois os despedia como indignos de tomar parte nas assembléias santas, eles não podiam mais entrar na Igreja até ao fim de sua penitência. Eles permaneciam à porta e aí rezavam a imploravam o socorro dos fiéis. A Igreja sempre sábia só conservou dessa prática de disciplina a cerimônia das cinzas, mas ela recomenda o seu espírito de humildade e a compunção.
Mas por que este exterior público de penitência? Não se pode também fazer penitência sob vestes comuns e mesmo sob vestes preciosas? Sim, é verdade, pois vemos grandes santos, grandes santas viverem numa perfeita penitência no meio das grandezas, sob a púrpura e o diadema. No entanto, convém admitir, esse exterior de penitência é muito próprio a nos inspirar os sentimentos interiores da penitência. O homem terrestre tem necessidade de um sinal sensível.
Vede a prova disso nas Ordens penitentes. Não poderíeis acreditar quão poderosa é a vista deste hábito de burel grosseiro, pobre: é uma exortação contínua à penitência. E a Igreja não o faz? Vede como ela se reveste de ornamentos sóbrios: não escutamos mais no santo templo senão cantos mais melancólicos e orações de contrição e misericórdia. Depois outro pensamento de justiça: é pelo corpo que cometemos a maior parte de nossos pecados. Pecados de vaidade, de sensualidade; é justo que o culpado os expie.
Apressemo-nos, em expiar nossas faltas neste mundo, pois o tempo da penitência é curto, a morte está talvez próxima, terceira verdade que as cinzas nos pregam.
Elas são o sinal memorial da morte. ‘Lembra-te, ó homem, que tu és pó e ao pó hás de tornar.’ Eis o que vamos nos tornar, um pouco de pó estéril, sem nome, sem distinção, sem honra, sem amor. Ah! não devemos, pois, idolatrar este corpo, mas servir-nos dele como de uma vítima da penitência.
As cinzas são o símbolo da morte. Quando se quer cortar uma árvore, ela é marcada; então não se lhe cultiva mais, não se conta mais com os seus frutos. É a morte que nos marca assim para a eternidade; então, não vivamos mais para este mundo no qual talvez logo não estaremos mais, ah! quem sabe se não será a última marca, o último aviso de nossa morte? Isso pode acontecer.
Então, disponhamo-nos à partida, estejamos sempre prontos e estaremos sempre calmos e tranquilos. Somente aquele que está em falta, que é culpado, é que teme a chegada do senhor, do juiz. Aquele que está em seu dever, a deseja e a espera com confiança.
Meu desejo, não é ver soar para vós a hora de uma partida próxima. Oh! não! Vivei por muito tempo, mas para Deus, para Sua glória. No entanto, a prudência, a sabedoria, a dedicação que tenho por vossa salvação, me obrigam com a Igreja a dizer-vos: Passai este santo tempo de penitência como o último, como se devêsseis morrer com Jesus Cristo, e depois ressuscitar com Ele em Sua Glória eterna.”
(Obras Completas / Volume XI)