Capítulo I
O pequeno fabricante de azeite
Certo dia, em 1804, um amolador ambulante chegava à La Mure, aldeiazinha do Dauphiné, de cerca de quatro mil almas, construída, a meio-caminho entre Gap e Grenoble, sobre o planalto da Mateysine. Aí começa, costeando a torrente do Drac, a pitoresca estrada que conduz a Corps e de onde se admiram, em horizonte grandioso, os montes de Oisans, o reverso do Gargas que domina La Salette, o maciço do Obiou, os imponentes cumes do Valjouffrey.
Ao lado do homem, caminhava uma menina pobremente trajada.
O “gagne-petit” – nome que se dava então aos amoladores ambulantes – tinha por única fortuna um pacote de roupas pendurado no carrinho da mó. Na primeira encruzilhada de La Mure, pôs-se ele a fazer ranger seu instrumento, enquanto a menina ia de porta em porta angariar trabalho para seu pai.
Pessoas houve que, compadecidas, interrogaram a criança. Em seu dialeto cantante do Isère, derivado do antigo provençal, explicou que se chamava Mariana Eymard, que contava cinco anos de idade e que acompanhava seu papai de cidade em cidade. À noite, deitavam-se sobre a palha, nos celeiros. Sua mamãe morrera há pouco tempo, lá embaixo, entre as grandes montanhas… Era tudo o que sabia.
A Julião Eymard – era este o nome do amolador – não faltava trabalho nas praças e ruas de La Mure. Resolveu então estabelecer-se nessa cidade, onde havia caridade e religião.
Parecia que uma bênção especial pairava sobre a pequena cidade desde Julho de 1799, quando aí se demorara por dois dias o Papa pio VI, prisioneiro do Diretório, e que os guardas conduziam a Grenoble. O povo fez ao Vigário de Jesus Cristo uma ovação comovente, entrecortada de lágrimas. Os valorosos cristãos de La Mure exigiram que o Soberano Pontífice, ancião que já ultrapassara os oitenta anos, esgotado de fadiga, repousasse na mais confortável casa da cidade. No momento de partir, o Santo Padre, impossibilitado de andar, devido à fraqueza, pediu que o levassem à sacada, de onde abençoou a multidão ajoelhada.
Nesta parte do Dauphiné, a Revolução ímpia poucos traços deveria deixar. Na época da Concordata, após o regresso de seus Sacerdotes, os filhos de La Mure retomaram, felizes, o caminho da Igreja. E durante longos anos ainda, a paróquia, em sua totalidade, será edificante na admirável fidelidade às práticas religiosas.
Julião Eymard, por sua vez, era um verdadeiro cristão, e fortalecido na fé por meio de rudes provações. Nascido em Auris, no vale de Oisans, casado em 12 de Abril de 1785 com Joana Maria Caix, camponesa de Freney, no mesmo vale, fora cultivar a terra na aldeia de sua esposa. Agricultor abastado, naquele tempo, se damos crédito a certas testemunhas, Julião, perseguido e arruinado, na Revolução, pelos “patrioteiros” viu-se constrangido a ganhar sua subsistência recorrendo a um miserável ofício.
Seis filhos lhe foram dados por Deus: Margarida, Pedro, Tiago, Antonio, Julião e Mariana. Os três mais velhos, Julião os empregou em fazendas, um após outro. Em 1804, depois da morte de sua esposa, confiou Antonio, que tinha então dez anos, e Julião, com sete, a parentes; depois, corajosamente, abandonando-se à Providencia, e decido a reconstruir seu lar, tomou pela mão sua pequena Mariana e partiu.
Operário hábil, desembaraçado e consciencioso, Julião Eymard pode contar bem cedo, em La Mure e em arredores, com uma boa freguesia. Davam-lhe utensílios de cozinha para reparar e o resultado era maravilhoso; punha em condições de funcionar teares e lagares de azeite; amolando velhas facas, teve a idéia de fabricar novas.
Decidido a casar-se novamente, e animado por seu confessor a realizar este projeto, lembrou-se de uma jovem, boa, piedosa, trabalhadeira, de uma família com a qual tivera relações em Freney, cidade natal de sua primeira esposa. Alugou o andar térreo da casa Lesbros, na rua de Breuil, nº 69, onde estabeleceu-se como cuteleiro e ferreiro. Foi para aí que em Novembro de 1804 teve a alegria de levar Maria Madalena Pélorse, então sua esposa.
Os três primeiros filhos que nasceram deste segundo casamento morreram em tenra idade. Quase ao mesmo tempo faleceram quatro dos filhos do primeiro matrimônio: Margarida, Pedro, Julião e Tiago. Restavam ao cuteleiro apenas um filho, Antonio, com 17 anos, e uma filha, Mariana, com doze, quando veio ao mundo o seu benjamim, o herói desta história.
Pedro Julião Eymard nasceu numa segunda-feira, em 4 de fevereiro de 1811. Batizado no dia seguinte, teve por padrinho seu irmão e por madrinha sua irmã. Pedro Julião – que, de ora em diante será chamado simplesmente Julião – por muito tempo deu a Mariana apenas o nome de “madrinha”. Quanto a Antonio, seu padrinho, deveria deixar o lar em 1813 para incorporar-se à guarda imperial. Numa última carta, comunicará à sua família sua partida para Mayence; nunca mais dará notícias: Antonio será um desses “desaparecidos” inumeráveis cujos túmulos, depressa destruídos, demarcaram as estradas da Rússia e da Alemanha.
O pai do pequeno Pedro Julião inscreveu-se na confraria dos Penitentes do Santíssimo Sacramento, cujas obrigações cumpria com fidelidade: exemplo de uma vida cristã, assiduidade às missas dominicais e às procissões. Deveras trabalhador, era ávido de lucro; era um homem inflexível, teimoso, e, embora de bom coração, tinha mudanças bruscas de humor. Sua esposa, de caráter benigno, era muito piedosa; não deixava passar um dia sem ir ajoelhar-se ao menos por alguns minutos, na Igreja. Entretanto, as ocupações não faltavam a Maria Madalena: não aceitara ser nutriz da pequena Annette Bernard, que Julião chamará sua “irmã de leite e de adoção”? Assim mesmo, somente motivos graves a impediam de correr à Igreja quando soava a “benção dos agonizantes”: alguém na paróquia estava prestes a comparecer diante de Deus; Maria Madalena ia receber, em intenção do moribundo, a bênção da Santa Hóstia.
Certo dia, no momento de partir, vê seu pequenino Julião, ainda em faixas, que lhe parece estender os braços. A mamãe acomoda o filhinho nas dobras de seu avental e uma vez na Igreja, toma-o nas mãos, apresentando-o, ao soar a campainha, entre os transportes de seu coração materno, à benção traçada pelo Ostensório. Maria Madalena, de ora em diante, fará sempre assim, quando for dada a bênção para os agonizantes, pois o pequeno, mantendo-se quieto, não perturbava o recolhimento. Disse alguém que a educação de uma criança começa aos quatro meses: assim aconteceu com a educação eucarística de Julião Eymard.
Quando já um pouco crescido e sabendo andar sozinho, sua felicidade será acompanhar sua mamãe à Igreja. Segundo a declaração de uma testemunha, jamais ele dizia: “Vamos embora”. Jamais também a mamãe viu-se obrigada a deixar a Missa ou a bênção por causa do filhinho.
Desde pequenino, teve ele o sentimento da Presença Real. Com seis anos apenas, acompanhava com um profundo olhar sua mamãe e sua Irmã, quando estas se aproximavam da Sagrada Mesa. Certa manhã, ao voltar da Igreja, tendo Mariana tomado Julião sobre os joelhos, ele se apoiou afetuosamente sobre ela, dizendo-lhe: “Oh! tens um cheiro de Jesus !”
Por volta dos sete anos, mais de uma vez o pequeno Eymard saía de casa, ausentando-se por alguns minutos, sem ousar dizer onde ia. Seus pais, entretanto, não o repreendiam: sabiam que ele ia à Igreja. Um dia, porém, inquietaram-se, porque Julião tardava a chegar. Annette Bernard, sua irmã de leite, foi mandada à Igreja, procurá-lo. Mas, na penumbra da nave, Julião não estava. Onde teria ele se escondido para rezar? Teria tido a audácia de penetrar no coro? Ajoelhada na Mesa da Comunhão, Annette inspecciona as “stalles”. Julião não está. Vencendo sua timidez, a menina vai olhar até mesmo atrás do altar. Que descobre ela? O pequeno, de joelhos, na escada que serve ao Sacerdote para expor o SSmo. Sacramento. Com a cabeça apoiada no Tabernáculo, Julião permanece imóvel.
“Há quanto tempo te procuramos!… exclama Annette. Que fazes tu aí?
– Ora, minha oração!
– E porque a fazes tu no alto da escada? Em que pensas?
E Julião responde, mostrando com um gesto o Tabernáculo onde Jesus repousa: “N’Ele… daqui O escuto melhor.”
Não é de estranhar, portanto, que em suas notas íntimas, ao enumerar as graças recebidas no decorrer da vida, escreva ele: “Graça da Comunhão. O sonho de meus oito anos: tudo para ela.”
Julião fazia parte dos meninos do coro; chegou mesmo a ser cerimoniário. O costume exigia, em La Mure, que aquele que estava escalado para acolitar a Missa, durante o quarto de hora que a precedia, percorresse as ruas, chamando os fiéis com o toque de uma campainha. Era um oficio muito caro a todos os coristas, que mesmo o disputavam. Julião, se fosse possível, desempenhá-lo-ia diariamente. Em todo caso, lançara mão de um estratagema, a fim de poder anunciar a Missa com mais freqüência do que lhe permitia o turno dos coristas: passando à tarde pela Igreja, muitas vezes cedia à tentação de tomar a campainha e levá-la para casa; prevenia assim toda concorrência.
Mas, será que Julião não tinha defeitos? Sua fronte larga e convexa denotava teimosia. Em seus olhos vivos perpassavam algumas vezes cólera; verdade é, porém, que as doces reprimendas da mamãe desfaziam esses ímpetos passageiros. Julião era também curioso e perscrutador; apesar das proibições expressas, era surpreendido explorando armários e prateleiras. Repreendido severamente certa vez, prometeu corrigir-se e cumpriu sua palavra.
Não era, igualmente, destituído de amor próprio. Tinha um fraco pelo que brilha, e isto o arrastou a cometer um pecadinho de que se arrependerá até ao fim da vida.
Os meninos de La Mure brincavam muitas vezes de soldado; era para eles a diversão preferida. Em março de 1815, tinham visto Napoleão, evadido da ilha de Elbe, atravessar a cidade à frente de seus granadeiros; ocupava então posto aquele que tivesse um fuzil maior, a mais bonita espada de madeira. Mas, para esses pequeninos, nada igualava as famosas barretinas de penacho vermelho. Julião Eymard possuía uma de cartolina, feita por Mariana, mas o penacho de lã não estava do gosto do pequeno. Ora, um dia, indo dar um recado em casa da senhorinha Besson, que morava na mesma rua Breuil, o que vê Julião bem no meio de uma mesa? Um penacho de granadeiro, magnífico, autêntico – um penacho verdadeiro! “Tive tanta vontade de possuí-lo – contará ele mais tarde – que o furtei. Ao chegar em casa, senti remorso. Voltei depressa, e jogando o penacho onde o havia encontrado, fugi a correr.” Neste ponto da narrativa, morreu-lhe instantaneamente no rosto o sorriso que a acompanhava. “Foi talvez, concluiu ele, o maior pecado de minha vida.”
Como se vê, o arrependimento seguiu-se imediatamente à falta. Esta natureza tão leal não podia compactuar com a mentira, o que Julião demonstra melhor ainda em outra circunstância. Em pleno inverno, alguns rapazes fizeram um resvaladouro sobre a neve, na rua Breuil. Julião olhava-os, cheios de inveja. “Papai, pediu então, eu também queria deslizar sobre a neve. – Proíbo-te de ir brincar com eles, respondeu o pai, num forte tom de voz; do contrário, verás!” Minutos depois, Julião ficando só, abre a porta, e, ei-lo a seu contento… Não por muito tempo, entretanto. Deixou de repente seus companheiros e correu à oficina de seu pai, que, como o pequeno bem sabe, não brinca quando dá ordens. – “Papai, sussurrou a criança, desobedeci!” E recebeu o castigo que o esperava.
Julião era estudioso: mostrava-se bom aluno. Gostava também do trabalho manual. Era incontável o número de nogueiras nessa região do Dauphiné, e mesmo nas aldeias ouviam-se gemer as prensas de óleo de nozes.
O Sr. Eymard, sempre inventivo, construiu uma, de mós conjugadas, extraídas por ele mesmo de uma pedreira que comprara à prefeitura de Prunières. Encheu-se então de ambição quanto ao futuro de seu filho: Julião não seria um simples cuteleiro como o pai; tornar-se-ia fabricante de óleo de nozes. Inteligente como era, lograria bom êxito no comércio… O imóvel contíguo à casa Lesbros estava exposto à venda; o cuteleiro comprou-o para nele instalar o lagar de óleo. Apressou-se em chamar um certo Giraulet, de sua cidade natal de Auris, e que era prático nesse oficio. Ora, o trabalho de Giraulet interessou logo, e vivamente, o pequeno Julião. Ao voltar da escola, corria a fustigar com o chicote e avivar ao trabalho o jumento que movimentava a prensa.
Um tal zelo merecia ser estimulado. E foi assim que Julião se viu investido de um encargo importante: levar as encomendas à casa dos fregueses do bairro. Sentiu-se feliz com isto, pois o seu ofício lhe estava atraindo interesse: vez por outra, alguns colegas vinham contemplá-lo a girar em torno da prensa; e ainda encontravam meio de furtar, sagazmente, as nozes esmagadas. O pequeno trabalhador, porém, não os perdia de vista. Repreendia os delinqüentes com um tom severo: – “É furto, dizia-lhes. É necessário dar um real para indenizar.” Nada de surpreendente, portanto, que na escola os jovens se desforrassem. – “Tens cheiro de azeite!… Tens cheiro de azeite!…” cantavam eles como um estribilho, apontando as manchas que enodoavam a roupa de Julião. E o pobre escolar sofria com isto, naturalmente.
Felizmente havia a Igreja, onde seu pai o autorizara a demorar-se quanto quisesse, confiante de que o filho não abusaria da permissão dirigindo-se a outro lugar. Julião não podia passar aí sem sentir-se irresistivelmente atraído. Levava sempre no bolso uma cadernetinha em que copiava orações e anotava resoluções como esta: “O Irmão do Menino Jesus, carmelita, disse que um amigo não passa diante de seu amigo sem dizer-lhe uma palavra. Pois bem! É necessário que eu visite muitas vezes o meu Bem-Amado.”Entrava na Igreja, escondia a vasilha de óleo atrás da pia de água benta e ia ajoelhar-se o mais perto possível do Tabernáculo.
Que orações, que confidências dirigia ele então ao Deus da Eucaristia? Com muita simplicidade “fazia sua meditação”, contemplando Nosso Senhor com os olhos da fé, falando-Lhe, e depois ficando em silêncio para ouvir esta voz divina que se insinua no coração sem ruído de palavras. Um dia, quando contava mais ou menos nove anos, perguntara à sua irmã Mariana o que significava “fazer meditação”. Mariana explicara-lhe do melhor modo possível. O pequeno, compreendendo, mostrou-se maravilhado. “Ah! madrinha, é somente isto?” exclamou Julião.
Era, na verdade, uma criança privilegiada. Certas devotas chegaram a taxar Julião de excêntrico em suas maneiras de rezar. Certa vez, em pleno meio dia, não teve ele a idéia de imitar São Carlos Borromeu, de quem acabara de ler a biografia “dedicada à juventude”? Ao chegar à Igreja, ficou descalço, passou ao pescoço uma grossa corda de que se munira, acendeu uma vela e fez assim o percurso que vai da tribuna à entrada do santuário onde, ajoelhado, recitou a Nosso Senhor ultrajado em seu Sacramento um ato de reparação por ele mesmo composto. Julgava-se sozinho, mas se enganara. Na tribuna, uma senhora rezava. “Esta, pensando que Julião brincava, chegou-se a ele e repreendeu-o energicamente. O menino, porém, explicou humildemente: Oh! senhora, não é uma brincadeira; estava fazendo meu ato de reparação!”
Acerca de sua piedade infantil, referem-nos ainda outros traços encantadores.
“Sou natural de La Mure, contou Mme. Antoinette Rosset-Bressand. Meu pai morava numa casa vizinha à dos Eymard, na rua de Breuil. Minhas duas irmãs e eu éramos colegas de Julião. Mas que distância já se notava entre ele e nós, quanto ao caráter e à piedade! Meu pai, que o apreciava muito, visto que por seu bom procedimento revelava-se uma criança excepcional, confiava-nos a ele. – “Vês estas pequenas travessas? dizia-lhe nosso pai, entrego-as aos teus cuidados.” E Julião, para nos manter tranqüilas, passava uma hora a contar-nos histórias.
“Minhas irmãs e eu, com Mlle. Desmoulins (mais tarde Mme. Latour), íamos freqüentemente pedir-lhe um pouco de pão de nozes, de que muito gostávamos. De consciência bastante delicada, recusava de início. Insistíamos, porém. ‘Mas não é meu!’ respondia ele. Afinal de contas cedia, mediante a condição de que seríamos todas muito atentas à leitura que nos faria e que recitaríamos o terço com ele.”
“Vestia então, sobre a roupa impregnada de óleo, uma espécie de sobrepeliz feita por ele mesmo, e pendurava no pescoço uma cruz enfiada num cordão. Observava-nos de soslaio. ‘Vamos, meninas, dizia ele seriamente, deixem de rir; é hora de rezar.’ Abria em seguida um armário onde se via um grande crucifico e uma imagem da Santíssima Virgem. E colocavámo-nos a rezar. Muitas vezes, em vez de ler, Julião pregava…”
Suas irmãs Mariana e Annette observavam que o irmãozinho guardava com muito cuidado todas as tabuinhas que encontrava. Com elas, Julião fabricou 14 pequeninas cruzes que colocou, muito em segredo, nas traves do sótão. Annette e Mariana, porém, foram convidadas a admirar a obra-prima e a percorrer as estações com Julião, que se expandia em reflexões admiráveis.
Quando o papai trabalhava em sua oficina de Prunières, Julião ia levar-lhe o almoço. Brincava então na campina que se estendia em volta da pedreira, repetindo sempre o seu “brinquedo” favorito: improvisava um caminho da cruz com pequenos galhos que ele cortava na relva. A pastorinha Euphrosine Darier, observava-o certo dia, do campo vizinho onde vigiava o gado. – “Vamos fazer juntos o caminho da cruz?” diz-lhe o menino.
Uma criança desta têmpera seria, em nossos dias, preparada sem demora para a Primeira Comunhão. Infelizmente, naquela época, um costume nascido do erro jansenista, continuava a afastar as crianças da Sagrada Mesa, durante cinco, seis anos e até mais, após o despertar da razão.
Parece, entretanto, que o Pároco de La Mure era menos rigoroso quando se tratava de levar seus jovens paroquianos à Confirmação. Foi assim que Julião recebeu este Sacramento com a idade de onze anos e três meses, em 22 de Maio de 1822, numa quarta-feira, das mãos veneráveis de D. Claude Simon, Bispo de Grenoble – o mesmo que, há sete anos atrás, conferira as Ordens Sacras a João Maria Vianney, nomeado Cura d’Ars em fevereiro de 1818.
E a Primeira Comunhão? Infelizmente era necessário esperar alguns meses! O piedoso menino preparava-se com um ardor inconcebível.
Era costume que os estudantes se confessassem apenas raras vezes. Para que os seus pecados fossem absolvidos, Julião precisava usar de uma inocente esperteza. Na companhia de algum colega – ora o pequeno Victor Baret, que será mais tarde sacerdote, ora o pequeno Barginot, futuro dono de um botequim e futuro prefeito ímpio de La Mure – dirigia-se a Villars, distante duas léguas da Igreja de sua cidade.
Certo dia, de manhã bem cedinho, viaja acompanhado de Baret. Cai a neve. As duas crianças haviam partido em jejum – uma loucura! – em expiação de seus pecados. Em Villars, Julião serve de acólito na Missa, com um fervor que edifica o sacerdote e os fiéis. Confessam-se os dois, logo após, e voltam radiantes, dividindo entre si um pedaço de pão comprado por um real, toda a fortuna que possuíam! Conversavam no caminho, e Julião diz: “Somos bem felizes por estarmos absolvidos de nossos pecados. Comportemo-nos bem.”
Á espera do celeste dia, Julião ainda fará maiores “loucuras”.
“Quando eu me preparava para a primeira Comunhão, confessará ele bem mais tarde, quantas vezes fui ao ‘Calvário’, descalço, e sob a inclemência do tempo!”
Ás portas de La Mure, numa colinazinha onde outrora se erguia uma cidadela, tinham erigido três cruzes. Era aí que nosso jovem penitente, enfrentando um frio rigoroso, ia meditar sobre os sofrimentos de Nosso Senhor.
Foi finalmente anunciado que a 16 de Março, Domingo da Paixão de 1823, – e ele contava então 12 anos – faria sua primeira Comunhão. No início da Quaresma, vendo os pais jejuarem com uma austeridade pouco comum mesmo nos lares cristãos, resolveu imitá-los, porém secretamente. Sua irmã Mariana surpreendeu-o certa vez querendo levar aos pobres o seu café da manhã, e Julião confessou que algumas vezes, de manhã, atormentado pela fome, precisava ir à Igreja pedir força para se manter de pé, e que, não raro, devia se encostar à parede para não cair! A senhora Eymard não pôde deixar de admirar esta virtude infantil que, sem dúvida, ultrapassava um pouco os seus ensinamentos: ela havia realmente incutido em seu filho a caridade para com os infelizes, mas não em semelhante grau de heroísmo! Quanto ao senhor Eymard, não repreendeu Julião, achando que isto passaria com os anos.
Raiou enfim a aurora do domingo, 16 de março. O futuro santo guardará uma lembrança indelével deste dia bendito de sua primeira comunhão. “Quantas graças me concedeu o Senhor nesse dia!” exclamará ele trinta anos mais tarde, sem poder conter as lágrimas. Foi sem dúvida lembrando-se da atitude de Julião nessa cerimônia, que um de seus amigos de infância pôde dizer: “Parecia com os santos quando estão em êxtase”.
Uma das graças da Primeira Comunhão para os predestinados ao Sacerdócio, é a de ouvir mais distintamente que nunca o apelo íntimo pelo qual, de ordinário, se conhece a vocação.
Por permissão de Deus, que tinha de certo em vista experimentar e fortalecer o eleito de seu coração, Julião Eymard, embora tão modesto e tão reservado mesmo no seio da família, foi assaltado, pouco tempo depois da Primeira Comunhão, por tentações impertinentes que o inquietaram e o fizeram duvidar de sua vocação.
“Ninguém, – deverá ele confiar um dia a um amigo íntimo – ninguém pode imaginar o que eu sofri! É a esta luta, mesmo, que eu devo o ter conservado alguma coisa de guerreiro na minha voz, nas minhas palavras e nos meus gestos, quando prego aos moços. Contraí este hábito na minha juventude. Era com palavras enérgicas que me livrava do tentador. Algumas vezes, dizia ao meu Deus: ‘Meu Deus, cortai-me braços e pernas, mas salvai-me do pecado.’ ”
Seu confessor de La Mure, em lugar de reanimá-lo por meio de conselhos, repreendia-o severamente por faltas que ele não cometera. Decididamente, Julião só encontrava socorro contra o desânimo, na oração e na proteção da Santíssima Virgem, tanto mais que um outro sofrimento, bem doloroso, juntava-se às torturas da consciência. Falara a seu pai do desejo de entrar no seminário. Penitente do Santíssimo Sacramento, o senhor Eymard deveria ter compreendido a honra que Deus lhe fazia, pedindo-lhe o filho para seus altares. Mas não! O único filho que lhe restava deveria sucedê-lo no seu negócio. O professor estava contente com Julião que já sabia bem a aritmética e, na ortografia e na letra, podia competir com um escrivão de cartório. Nada mais era preciso para fabricar e vender óleo. O menino foi retirado definitivamente da escola.
O clero da paróquia não ousou intervir em favor de Julião, nem mesmo sua mamãe, que, em silêncio, rezava e esperava.
Eis porque Julião, tendo apenas 13 anos, dedicou uma peregrinação Àquela que, em sua terra, todos chamam “a boa Mãe do Laus” e que, lá embaixo, no vale, é honrada sob o título de Notre Dame de Bom-Rencontre.
Laus está situada na paróquia de Santo Estevão de Avançon, ao sul do distrito dos Altos-Alpes. Quinze léguas mais ou menos, de distância, em linha reta, de La Mure até lá; Julião devia fazer o percurso a pé, como prometera, por caminhos ásperos e tortuosos que costeavam em grande parte os abismos do Drac; três dias de viagem para avistar enfim, entre as encostas das montanhas, o vale encantador onde se esconde o santuário de Maria. Embora exausto, Julião sentia-se feliz, ao chegar aí. À entrada do vale, que anteriormente fora um lago – lacus, Laus – o menino caiu de joelhos ao pé da vetusta cruz de pinho na qual Nosso Senhor Crucificado aparecera à venerável Benedita Rencurel. Penetrou, finalmente, cheio de jubiloso fervor, no santuário onde a imagem da Boa Mãe sorri ao peregrino. Adiantou-se até a antiga capela que se esconde sob a grande Igreja, e aí, conforme o costume imemorável de todos os bons peregrinos do Laus, recitou em primeiro lugar as ladainhas da Santíssima Virgem. Em seguida, numa longa e singela prece, Julião explicou à sua celeste Mãe o motivo que o trouxera a Seus pés. Maria não Se manifestou, em visão, ao Seu pequenino servo; entretanto, dignou-Se responder-lhe.
Para convencê-lo seguramente da vontade de Seu Divino Filho, Notre-Dame de Bon-Rencontre escolheu um mensageiro. Na época desta peregrinação de Julião Eymard ao Laus, os missionários Oblatos de Maria Imaculada, fundados há pouco em Marselha por Dom Mazenod, cuidavam do santuário. Ora, dentre eles, um se tornará, em pouco tempo, popular em toda a região. Quem não conhecia o Padre Touche? Sobre este apóstolo, digno dos tempos antigos, Mgr. Charles Daniel traçou este conceito curioso: “Padre Touche era um missionário imensamente zeloso, que empreendia suas excursões apostólicas sem levar consigo um vintém. Foi um homem a quem ouso qualificar de original, mas também santo.” Baixo, moreno, rico de expressões, partia para as missões sem bagagens, sempre a pé, certo de encontrar, no caminho, um celeiro onde se abrigar, e, depois, alimento e agasalho, e até mesmo roupa, conforme a necessidade, em casa dos vigários do Dauphiné ou da Provençe que o recebiam em suas paróquias.
Nosso jovem peregrino não passou despercebido ao Padre Touche que, dele se aproximando sem cerimônia, interrogou-o sobre a finalidade de sua viagem, emocionando-se com a piedade cheia de confiança de Julião. E este veterano do sacerdócio, habituado a ouvir confissões bem diferentes, teve somente a admirar a lúcida beleza de uma alma inocente, ao satisfazer o desejo do peregrino de ser ouvido em confissão geral.
“Aos 13 anos, – contará o Padre Eymard no fim da vida – fiz uma confissão geral no Laus. Como chorei!… A Santa Virgem concedera-me lágrimas de contrição. Vejo, daqui, a coluna em que me recostei para chorar, e sempre que volto ao Laus, gosto de ajoelhar-me nesse lugar.”
Ao sincero arrependimento de suas faltas, seguiu-se na alma de Julião, confortadora alegria. Seu confessor, ao mesmo tempo que o exortara a tornar-se sempre melhor, tranqüilizara-o a respeito de certas tentações em que não havia sombras de faltas, visto que não consentia nelas. Dera-lhe, principalmente, a certeza do apelo do alto. “Meu amigo, declarou-lhe familiarmente o Sacerdote, não estás onde o Bom Deus te quer; deves ser Padre.”
– Mas meu pai não me dá o necessário consentimento.
– Nada de “mas” meu amigo… Deves aprender o latim… E, além disto, não comungas com freqüência. Dora em diante, comungarás todos os domingos. Está resolvido!
O missionário dava a Julião não apenas o conselho, mas a ordem de comungar todos os domingos. Nenhuma outra decisão poderia ser tão agradável a esta alma de criança que acabava de sentir-se devorada, no Laus, por uma fome da Eucaristia jamais experimentada até então.
E o peregrino de 13 anos deixou Notre Dame de Bon-Rencontre inundado dessa alegria que é fonte de radiosa esperança.