Chega-se ao alto do Calvário, é aí que o sacrifício deve ser oferecido. Quatro carrascos se apoderam da vítima. Trata-se de Seus despojos, lançam-se sobre eles, mas estão colados à Sua Carne, o Sangue que corria de Suas Chagas coagulou. Mas o que vejo? Uma mão cruel puxa, arranca, esfola ainda vivo o deplorável paciente. Ai! Ele não diz uma palavra, nenhum suspiro, algumas lágrimas de Sangue escapam-se de Seus olhos; é a dor extrema que as faz correr. Está resolvido, a Vítima não tem mais nada. Grande Deus! Que Corpo horrendo, que carnificina, pode-se contar todos os Seus ossos, como o disse Isaías [Sl 21,18].Céus! abri-vos [cf.Is 45,8]. Eis o Homem [Jo 19,5]. Eis o Filho de Deus. Vós O reconheceis?
Pecadores, aproximai-vos. Eis o Homem, eis o Filho do Homem. Contemplai-O, sofreu Ele suficientemente, foi torturado o bastante? Podereis vós mesmo encontrar um espaço para algumas novas torturas? Pois bem, completai. Completam. Suas mãos e Seus pés foram poupados.
Deita-Te sobre a Cruz, grita o oficial que preside a execução, e Jesus Cristo, como um manso Cordeiro, deita-Se sobre a Cruz sem queixar-Se. Dá Tua mão direita; Ele a dá generosamente, abençoando o carrasco que a prende, e logo um grosso cravo a traspassa, penetra adiante, atravessa a madeira do suplício. Dá Tua mão esquerda; Ele a apresenta, mesmo tratamento. O carrasco a agarra, estende-a; ela não pode chegar ao lugar determinado. O que vejo Grande Geus! Seu braço é deslocado.
Que punhalada para Maria! Cada golpe de martelo Lhe traspassa o Coração. Ah! Simeão, a espada é tirada da bainha. Cumprem-se estas palavras: E a Ti, uma espada traspassará Tua alma! [Lc 2,35].
Seus pés estendidos, puxados à força, recebem por sua vez dois cravos. A crucifixão está completada, a Cruz é erguida. Elevam-na, ela cai, e um violento abalo rasga, aumenta as chagas do supliciado. Ei-LO, pois, Aquele que no Céu partilha a divindade do Pai e a Quem os Anjos adoram tremendo à vista de Sua Majestade. Ei-Lo, pois, Aquele cuja bondade foi descrita por estas palavras tão tocantes: Passou fazendo o bem e curando a todos [At 10,38]. Eis a Sua recompensa.
Estás aí, Tu, fazedor de milagres, dizem-Lhe ironicamente os príncipes judeus e todo este povo ébrio de Seu Sangue, assentado aos pés de Sua Cruz para cumulá-Lo ainda de injúrias. Estás aí, Tu que salvas os outros; salva-Te pois a Ti mesmo, se és o Filho de Deus. Rei de Israel, que desça pois da Cruz, e seremos Teus discípulos: Que desça agora da Cruz e creremos n’Ele [Mt 27,42].
Mas o adorável Salvador, suspenso entre o Céu e a terra, não Se ocupa senão em cumprir Sua grande função de Mediador entre Deus e os homens. Por conseguinte, com os braços estendidos para receber todos os pecadores, com os olhos elevados para o Céu, Ele pede graça, misericórdia; escutai Sua oração: Pai, perdoai-lhes, não sabem o que fazem [Lc 22,34].
Mas para quem Ele solicita este perdão? Grande Deus, quem o teria acreditado: para Seus algozes, e para estes algozes vomitando ainda contra Ele horríveis blasfêmias. Exemplo único na história do universo.
(Sumo Sacerdote (São Paulo) – deve ser Inocente, como Mediador, Sacrificador e Vítima, Pontífice eterno.)
Avancemos. Dois malfeitores são crucificados ao lado de Jesus Cristo. Estava predito. Foi contado com os transgressores [Is 53,12]. No entanto, um destes ladrões observa este Supliciado ao seu lado, objeto de tanto ódio e de insultos, ele O contempla, quase já não tem mais forma humana: Não tinha beleza nem esplendor [Is 53,2]. Mas Sua paciência, Sua bondade, o perdão que Ele acaba de conceder aos Seus algozes o tocou. É um Inocente. E eis este celerado tomando Sua defesa em face de toda a nação judaica. “Infeliz, diz ele ao outro que se uniu às blasfêmias dos judeus, como tu ousas insultar ainda este Justo. Se nós sofremos, é porque o merecemos, mas este é Inocente.” Grande Deus, que homenagem! Que advogado!
Voltando então sua cabeça para Jesus, ele vai ainda confessar Sua Divindade, Sua Realeza: Senhor, lembra-Te de mim, quando vieres em Teu Reino. [Lc 23,42] A fé heróica deste condenado, sua confiança, tocou o Coração de Jesus Cristo. Ele tinha guardado um profundo silêncio diante das injúrias de Seus inimigos. Sua Mãe, São João Seu discípulo bem-amado, não tinham ainda recebido nenhum sinal de amor do Salvador a Quem eles seguiram com tanta constância e […]
Mas apenas este ladrão Lhe dirige a palavra, Seu Coração se reanima, Seus olhos quase desacordados se abrem, e vão se fixar com ternura sobre este malfeitor que se torna Seu apóstolo. Ele Lhe pediu uma lembrança de compaixão, prevê tormentos ainda mais horríveis após a morte, confessa que é um grande culpado, mas o que lhe responde Jesus Cristo: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso [Lc 23,43]. Não, não, não é somente uma lembrança, mas um lugar, uma coroa, um trono no Céu! Comigo no Paraíso, e isto não após séculos nas chamas expiatórias, mas naquele dia mesmo. Hoje comigo no Paraíso.
Mas a graça é grande demais; este pobre infeliz está surpreso, pasmado. Pois bem, Jesus Cristo lho confirma por juramento: Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso. Grande Deus, quem é este Supliciado que partilha tronos, que é Senhor do Céu? Ah! meus senhores, é Aquele a Quem o Pai estabeleceu Juiz dos vivos e dos mortos [At 10,42]; já sobre a Cruz, como de Seu tribunal, Ele pronuncia sentenças de vida e de morte.
Dirigi vossos olhares para o outro ladrão, escutai suas blasfêmias, vede seu desespero. O infeliz não podia também pedir graça, como seu cúmplice? Ainda alguns instantes, o último suspiro, e este inveterado que não quis reconhecer em Jesus Cristo moribundo um Salvador, um Pai que lhe oferecia Seu perdão, vê-LO-á depois de sua morte em Sua qualidade de Juiz, e do alto da Cruz, como de Seu tribunal, e onde Seu Corpo está ainda suspenso, Jesus Cristo pronunciará Sua sentença de reprovação eterna. Ele foi estabelecido Juiz dos vivos e dos mortos [At 10,42].
Jesus Cristo vai morrer. A Igreja vai perder seu Chefe, mas Ele lhe deixa Sua terna Mãe. Ai! este Divino Filho que tinha querido ser despojado de tudo, que Se tinha despojado até da propriedade de Seu Corpo, dando-Se em Comunhão aos Seus Apóstolos, ao universo, e até ao fim do mundo, este Bom Filho, digo, quis reservar-Se Sua Mãe até ao último suspiro. Pobre Mãe, Ela estava lá aos Seus pés, banhada de lágrimas, Ela O tinha seguido levando Sua Cruz, tinha partilhado Seus opróbrios, vendo-A atrás d’Ele todos diziam: Eis a Mãe deste Infame, deste Blasfemador. E Maria, a exemplo de seu Filho, sofria tudo em silêncio, e só pedia uma graça, que a deixassem aproximar-Se do Condenado, a fim de ajudá-LO a levar Sua Cruz e morrer com Ele. Mas A repeliam com desprezo, e todos A maldiziam.
Depois, quando Ela viu Seu Jesus Crucificado, então Ela passou por entre a multidão, a guarda, os carrascos, e de pé aos pés da Cruz, Ela chorava com São João.
No entanto, Jesus Cristo, que tinha pensado em Seus carrascos, que tinha consolado o bom ladrão, não tinha ainda dito nada à Sua Mãe, à Sua Mãe desolada, opressa de dores. Mas Jesus Cristo era Mediador antes de ser Filho. Era preciso antes pacificar a terra com o Céu. Isto estava realizado pela vitória da Cruz, um eleito já tinha sido aí anunciado, o ladrão convertido. Era necessário antes de consolar Sua Mãe gerar-Lhe outros filhos. Isto restava realizado. A Igreja começa; aí está um Bispo, São João, pecadoras penitentes, Madalena e outras.
Aí também, entre estes espectadores impenitentes, encontram-se filhos do Cristo; ainda um momento, e o Calvário ressoará de soluços, e Seus algozes se lançarão aos pés de Jesus Morto, fazendo-Lhe reparação.
Jesus abaixa a cabeça, Seus olhos vão procurar Sua Mãe, Ele A olha com ternura; os olhos de Maria se encontram com os de Seu Filho. Ah! Que olhar, que adeus! Maria escuta: Mulher, eis aí Teu filho [Jo 19,26], Ele Lhe mostrava Seu discípulo – todos os pecadores. Mulher, eis aí Teu filho. Grande Deus! Que troca! Maria, Mãe dos carrascos de Seu Filho; que palavra lancinante para uma Mãe da parte de um Filho moribundo. Mulher. Ah! Maria, não Vos contristeis se Meu Salvador não Vos dá mais o título de Mãe. Eu sou Seu herdeiro, Seu filho, Ele me gerou sobre a Cruz e Vós não podeis ser ao mesmo tempo sobre a terra, a Mãe do Pai e do filho.
Olhando para Seu discípulo, e nele todos os homens, [Jesus] Se consola de Sua morte. Eis a tua Mãe [Jo 19,27]. Eu vo-LA cedo. Despojo-Me neste mundo de Meu título e de Meu direito, não mo reservando senão para o Céu, para estabelecê-LA Sua Rainha. Amai-A como Eu A amei, honrai-A, amai-A como um terno filho. Eis a tua Mãe.
Meus senhores, Jesus moribundo vos via também de Sua Cruz. O pensamento, a visão de um Deus abraça todos os séculos, tudo Lhe é presente; a vós também Ele disse: Eis a tua Mãe. É tudo o que Lhe resta de precioso, depois de Seu Corpo Eucarístico. Podia Ele testemunhar-vos mais ternamente Seu Amor? Poderíeis recusar este testemunho de perdão, de graça, de ternura? Não significa dizer-vos: dando-vos Minha Mãe, Eu vos dou todo poder sobre o Meu Coração, todo poder no Céu. Não é divinizar-vos, dar-vos o direito de chamá-LO vosso Irmão, tendo a mesma Mãe. Ah! como o discípulo, o filho mais velho de Maria, recebei-A em vossa casa, A recebeu em sua casa [Jo 19,27], em vosso coração. Nada iguala o amor de uma mãe, e aquele que não ama sua mãe não pode mais amar; este amor sobrevive à extinção de todos os outros. Eis a tua Mãe.
Após este último dever para com Maria, para com Sua Igreja, Jesus Cristo vai consumar a Redenção. Escutai-O queixar-Se docemente ao Seu Pai: Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes? [Mt 27,46] Ele vai colocar o último selo, e de antemão poder-se-ia considerar Sua paciência como um milagre de Seu poder ou um estado de insensibilidade. Um tal sentimento faria injúria ao Seu Amor; então, um suspiro, uma doce queixa ao Seu Pai, revela ao mundo a intensidade de Sua dor, de Seu abandono, de Sua tristeza: Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes?
Palavras proféticas, [Sl 21,2]. Palavras consoladoras. A mesma provação nos espera, nos aflige talvez. Consolai-vos com Jesus, e com Ele, clamemos ao Pai: Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?
Uma segunda palavra se faz escutar: Sitio – Tenho sede [Jo 19,28]. Jesus consultou as profecias; faltava ainda cumprir este oráculo de Davi: Como alimento deram-Me fel, e na Minha sede fizeram-Me beber vinagre [Sl 68,22].
Sitio. E um soldado, diz São João, testemunha, apresenta a Jesus uma esponja embebida de vinagre num ramo de hissopo, e Jesus recebe esta horrível bebida.
Sitio. Mas não era uma bebida sensual que Jesus Cristo pedia, meus senhores, era aquela que Ele pedia à Samaritana, era uma bebida das lágrimas da penitência, era uma fonte desta água viva que Ele quer encontrar no coração de todos os homens: a fé, o amor, diz Santo Agostinho, Ele tinha sede da fé da própria mulher [In Joannis Ev., tract. 15, 11; PL 35, 1514].
Mas o que vejo? O Céu se cobre de nuvens negras como de uma mortalha fúnebre. O sol empalidece, esconde-se. Espessas trevas cobrem a terra. A natureza estremece, o pavor reina em todas as partes do universo. Em Atenas, no centro do Areópago, Denys, pagão, pronuncia um oráculo à vista deste eclipse miraculoso: “Ou o Deus da natureza sofre, exclama ele, ou a natureza vai se dissolver.” Ele ainda ignorava[…] Mas concluamos…
Jesus Cristo no Jardim das Oliveiras sofreu em Sua Alma durante três horas os sofrimentos de Sua Paixão. Já há três horas também Ele sofre em Sua Alma e em Seu Corpo. É suficiente, todos os oráculos foram cumpridos. O resgate do gênero humano está pago, a Justiça Divina está satisfeita, a Igreja está fundada, a graça […], o Céu está adquirido para os homens. Então Jesus Cristo dá um suspiro. “Tudo está consumado.” [Jo 19,30] E logo: Pai, em Tuas mãos, entrego Meu Espírito [Lc 33,46]. E inclinando a cabeça entregou o Espírito [Jo 19,30].
Jesus solta um grande grito. Jesus Cristo abaixa a cabeça e dá o último suspiro. Meus senhores, Jesus Cristo morreu. É vosso Benfeitor, vosso Pai. Levantai os olhos, olhai, Jesus Cristo está morto. Sua cabeça está pendida para a terra. Seus olhos vieram apagar-se e morrer voltados para Seus carrascos, para assegurar-lhes Seu perdão, provar-lhes Seu Amor. Um Deus morreu, e o grito de Seu último suspiro fez tremer a terra, ela quer aniquilar-se. E este grito divino ressoou do Ocidente ao Oriente. O grande Pan morreu, e esta voz […] o oceano, e se faz escutar até nas Índias.
A este grito poderoso, os túmulos se abrem, os mortos saem, espalham-se em Jerusalém. A morte está vencida, um Deus morreu e o sol O chora, e não quer mais iluminar uma terra deicida. Os rochedos se fendem de dor. A religião judaica está abolida. Não há mais vítimas, elas são inúteis; não há mais Santuário, o véu está rasgado. E o que há de mais espantoso, nesse momento, e por uma espécie de encantamento, todo sacrifício humano cessa entre os bárbaros, os ídolos estão mudos, não se oferece mais nem vítimas nem sacrifícios. Dir-se-ia que o Céu lhes tirou até mesmo o pensamento a respeito deles. Todo o culto passa a consistir somente em oblações de frutos, em orações. Assim a idolatria de Confúcio na China não tem mais sacrifícios de seres vivos, depois do de Jesus Cristo. O Alcorão também não os tem. Os heréticos também não, e, no entanto, sem sacrifício, não há religião. Pensamento profundo: o sacrifício de Jesus Cristo completou tudo, pagou tudo, aniquilou tudo. Doravante, não há mais sacrifícios.
Jesus Cristo está morto, mas o que escuto no Calvário? Que espetáculo! Vejo o centurião e seus soldados que choram ajoelhados; e toda esta vil populaça que há pouco vomitava mil blasfêmias, agora bate no peito: Verdadeiramente este era o Filho de Deus. Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus [Mt 27,54]. E donde vem esta mudança? A terra treme debaixo de seus pés, é Seu poder, o sol se obscurece, é a condenação de seu deicídio.
E ei-los que se vão em soluços. Eis o cumprimento desta palavra de Jesus Cristo: E, quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim [Jo 12,32].
(São Pedro Julião Eymard – Obras Completas / Volume IX)